A análise global das potencialidades educativas das ferramentas experimentadas

Depois de uma análise particular a cada uma das ferramentas que me são mais familiares ou com que pude interagir de forma um pouco mais sistemática ao longo destas últimas semana, gostaria de finalizar esta reflexão com uma análise mais global, mas necessariamente breve, do que me parecem ser alguns desafios e limites que a mobilização deste tipo de ferramentas aporta ao campo educativo.

Parece-me inegável que estas ferramentas da web 2.0 vieram para ficar e para serem incorporadas no trabalho universitário...pelo menos enquanto outras não as substituírem. Esta asserção relativamente insofismável é no entanto abalada se pensarmos nos cerca de 700 anos da Universidade enquanto instituição e se nos detivermos a analisar a “forma” que mais profundamente caracterizou o seu funcionamento ao longo deste tempo. Curiosamente, ou talvez não, arriscaria dizer que estamos perante uma das mais conservadoras e resistentes instituições face à mudança e arriscaria dizer também que muito do que ainda hoje se faz nas universidades e do como se faz, na sua natureza mais profunda, não está assim tão distante do que historicamente estruturou a ideia e a função da universidade há 700 anos.

Pessoalmente sou tão contra o imobilismo institucional histórico da universidade como contra a tirania da mudança.

Naturalmente que o mundo mudou, as instituições mudaram, a sociedade mudou, a tecnologia mudou ainda mais e aparentemente todos mudam hoje com muito mais intensidade do que em séculos passados. Mas, às vezes, como T. Lampedusa bem assinalou “é preciso mudar para que tudo fique na mesma”. Esse é simultaneamente o grande desafio e o maior risco da incorporação de todas estas ferramentas, e a miríade de outras que por aí vão emergindo quotidianamente, no trabalho educativo ou pedagógico ao nível do ensino superior: estamos perante uma oportunidade de efectivamente reformar o que fazemos na universidade ou simplesmente passaremos a utilizar outros meios, não questionando os fins da nossa missão enquanto instituição e enquanto professores? Manter os fins e mudar os meios é simples operação de cosmética que pagaremos inevitavelmente, do mesmo modo que repensar os fins e manter os meios que tradicionalmente utilizávamos para alcançar outros fins é um embuste condenado ao insucesso.

Esse grande desafio passa, em minha opinião, pelo sentido que atribuirmos a todas estas inovações tecnológicas e que não pode se desligado de um questionamento mais amplo sobre o próprio sentido da universidade nos dias que correm; um sentido que tem não só de ser pessoalmente incorporado, como institucionalmente vivido e que mexerá com as fundações da instituição universitária, isto é, simultaneamente com as suas finalidades e com os meios de as perseguir, já que supõe uma série de rupturas com realidades absolutamente cristalizadas relativas às formas legítimas de produção e difusão do saber científico, à relação da universidade com o mundo que lhe é exterior, às modalidades de trabalho pedagógico tradicionalmente valorizadas, ao estatuto do que tem valor educativo e portanto dignidade para ser ensinado e aprendido e ao estatuto de quem tem poder de ser educador.

Obviamente que esta “revolução coperniciana” da universidade não se impõe por decreto, nem por qualquer processo de Bolonha, até porque para muitos representaria uma espécie de “hara-kiri” verdadeiramente inglório.

Enquanto tarda essa revolução há um conjunto de questões que nos devemos colocar e que sentimos que quem nos acompanha na mesma profissão também se vai colocando.

Estamos convictos e disponíveis a mudar na substância o que fazemos e como o fazemos e a acreditar que estas novas ferramentas são imprescindíveis a esta mudança? Estamos temerosos porque submersos pela incomensurabilidade destes novos meios? Adoptamos toda e qualquer mudança proveniente do mundo da tecnologia educativa pelo simples ímpeto de acompanhar o que é novo e pelo medo de ficar para trás ou simplesmente pelo “fascínio” que provocam em nós? Ou pura e simplesmente rejeitamos, muitas vezes sem experimentar e sem reflectir sobre o seu uso, estas ferramentas porque cremos que não só não são uma solução ou uma melhoria para nada, como ainda tornam a nossa vida profissional enquanto docentes menos satisfatória e menos legítima?

Para todos estes posicionamentos encontramos facilmente rostos e pessoas concretas nos nossos quotidianos profissionais e para todos eles há argumentos irredutíveis. O que torna a mudança muito mais complexa.

Da minha reflexão enquanto educador, construída a partir do contacto com algumas ferramentas da web 2.0, e correndo o risco de me repetir em algum momento face o que está dito para trás, gostaria – e não obstante as questões de princípio que antes coloco – de assinalar alguns aspectos que quanto a mim podem e devem constituir objecto de uma reflexão mais sistemática sobre a utilização destas ferramentas como dispositivos educativos:

1) A utilização destes novos recursos supõe uma transformação do espaço-tempo relacional com os estudantes. As transformações induzidas pelo processo de Bolonha em termos de tempo de contacto com os estudantes e tempo de trabalho autónomo vêm substancialmente inverter a lógica que dominava no ensino universitário em que a relação professor/alunos se construía e acontecia dentro de uma sala de aulas. Cada vez mais, portanto, a tendência será para que estejamos menos tempo com os estudantes em contexto de sala de aula e que o tempo do dito “trabalho autónomo” se alargue, com um evidente prejuízo na óptica do conhecimento dos estudantes e da promoção da relação educativa.

As ferramentas da web 2.0 parecem poder posicionar-se ambivalentemente face a esta transformação. Evidentemente que o contacto virtual e o acompanhamento que através de parte destas ferramentas é possível fazer do trabalho do estudante, supre em parte o défice de tempo de contacto presencial. Não obstante também é relativamente evidente que a relação mediada por estas ferramentas não é necessariamente semelhante à relação co-presencial. Parece claro que o debate, a troca de ideias, a relação humana e a regulação do trabalho desenvolvido, entre outros aspectos, se farão “a distância” e mediados por dispositivos menos permeáveis às singularidades e subjectividades de cada um dos nossos estudantes e onde o registo escrito tenderá a sobrepor-se ao oral.

Do ponto de vista dos docentes devemos talvez interrogar-nos sobre a transformação que estas implicações supõem no modo como pensamos e concretizamos o nosso fazer profissional. Não será um exercício futurológico exagerado se admitirmos que nos tornaremos todos uma espécie de docentes “a distância” cuja actividade profissional em termos de docência será pautada pelo domínio dos instrumentos informáticos e pelo atendimento relativamente individualizado dos nossos estudantes através desses meios com uma consequente intensificação do trabalho docente na medida em o tempo e espaço educativo deixam de estar limitados ao contacto presencial para se expandirem até aos limites de todo o tempo disponível. Ora, esta não parece ser uma situação desejável nem para docentes, nem para estudantes já que nos transformaria numa espécie de “big brother” educativo capaz de colonizar todo o tempo da vida dos nossos estudantes se a isso não estivéssemos atentos, intensificando concomitantemente, para além dos limites do razoável, o que é esperado do seu envolvimento no trabalho de aprendizagem.

Há pois que reflectir sobre as consequências que estas ferramentas terão no modo como vamos procurar equilibrar o espaço e tempo da relação pessoal com o espaço e tempo da relação virtualmente mediada

2) Um segundo aspecto que me parece interessante de equacionar prende-se com as potencialidades mas simultaneamente ambiguidades que a utilização educativa destas ferramentas comportam. As ferramentas da web 2.0 apelam, na sua generalidade, a uma utilização que tem na sua génese uma dimensão lúdica, isto é, cuja intencionalidade primeira não é necessariamente educativa, ainda que os seus efeitos o possam ser. Este carácter é mais evidente em algumas das ferramentas da web 2.0 como por exemplo os mundos virtuais, o flick, o slideshare e os próprios blogues que pela forma como estão estruturadas e se manuseiam permitem uma utilização simultaneamente lúdica e educativa, enquanto que outro tipo de ferramentas – como por exemplo as plataformas de e-learning – são, à partida, construídas com uma intencionalidade educativa.

Nesta perspectiva, estas ferramentas contribuem certamente para alargar o cânone do que entendemos como recursos educativos ou se preferirmos, em termos teóricos, assentam na valorização de modalidades de educação não formais (e informais) o que supõe um alargamento do entendimento do que valorizamos como saber e como modos de aquisição desse saber que apenas enriquecem a concepção de educação, em particular da educação superior.

O desafio que se coloca ao uso destas ferramentas é, em meu entender, a sua utilização segundo uma lógica que mantenha a tensão entre o lúdico e o educativo. Com efeito, a “hiper-escolarização” da forma/estrutura e do modo de manuseamento destas ferramentas da web 2.0 estaria precisamente a retirar-lhe esse potencial de se constituírem em modos de aprendizagem alternativos.

3) A educação, os seus meios e a sua finalidade e a relação com o saber. Este é talvez o aspecto que mais nos toca na análise que vimos fazendo das ferramentas da web 2.0 porque é nele que reside o cerne do sentido educativo da utilização das novas tecnologias.

Não há muito tempo alguns meios de informação televisiva deram cobertura ao que identificavam como uma inovação e sinal dos novos tempos do ensino na universidade. Salvo erro, em uma das unidades curriculares de uma das unidades orgânicas da Universidade de Aveiro preparava-se uma aula no “mundo virtual” Second Life. A descrição do modo como este acontecimento ia decorrer acentuava a novidade de docentes e estudantes não necessitarem de estar pessoalmente face a face, podendo cada um destes, enfim, encontrar-se em qualquer parte do mundo e ainda assim estar presente nessa aula. Ora bem, de facto, este talvez fosse o único aspecto que naquela situação concreta distinguia uma “aula virtual” de uma “aula presencial” (e não vejo que este aspecto seja obrigatoriamente positivo! Depende das circunstâncias!). Tudo o mais se parecia monotonamente, pensei eu, ao já conhecido: um professor, um conjunto de alunos, um espaço de encontro, um conjunto de saberes a transmitir pelo professor aos alunos e, eventualmente, algum procedimento de verificação, talvez a posteriori, dos saberes adquiridos e, portanto, das aprendizagens realizadas.

Preocupa-me que se confunda a transformação dos meios através dos quais promovemos a educação com a transformação das finalidades dessa mesma educação. Preocupa-me porque este pensamento tem tanto de “mágico” como de ideologicamente discutível. Em primeira instância é um discurso que subsume as finalidades – a discussão filosófica e política do sentido da educação – à mudança dos instrumentos através dos quais promovemos a acção educativa. Esta postura, por um lado, supõe que já não é tempo de pensar nas finalidades e no sentido do que fazemos mas apenas tempo de encontrar e empregar os melhores meios de atingir finalidades que já estão estabilizadas e cuja definição nos é, grande parte das vezes, exterior. Por outro lado, esta postura assenta no pressuposto de que basta mudar os instrumentos com que prosseguimos a realização de certa tarefa para que o resultado a que cheguemos seja distinto, o que não é necessariamente verdade. Com efeito, mesmo se os instrumentos contêm em si uma definição das finalidade que através deles se podem alcançar, tal não significa que com instrumentos distintos as mesmas finalidades não possam ser alcançadas. Como é aliás, em nossa opinião, o que obnubila muitas vezes este debate sobre a introdução de “novas tecnologias” no trabalho educativo: a substituição de dispositivos pedagógico didácticos “tradicionais” pelos “modernos” dispositivos disponibilizados pela revolução informática e pela Internet em particular pode realizar-se sem questionar as finalidades ao serviço das quais esses diferentes meios são colocados. Em segunda instância, é um discurso ideologicamente ocultador na medida em que retira da arena do debate e da definição colectiva a questão das finalidades a prosseguir com a educação, neste caso com a educação superior, o que apenas tende a perpetuar o “status quo” instituído e um aparente consenso alargado veiculado pelo discurso ideológico hegemónico, nos dias correm claramente marcado por uma concepção neoliberal do funcionamento da sociedade e da educação em particular.

Há, portanto, que interrogar seriamente todas estas novas ferramentas quanto às transformações que são susceptíveis de promover quanto a um outro modo de pensar a educação (superior), isto é, de que modo nos ajudam a repensar as finalidades desta e se constituem como meios adequados para atingir estas novas finalidades.

E claramente que uma das finalidades a reequacionar no âmbito da educação superior é a que se prende com a relação com os saberes que os nossos estudantes desenvolvem. Se, apesar de todos os novos meios pedagógico-didácticos introduzidos no ensino/aprendizagem, a relação com o saber continuar a ser de tipo instrumental, ancorado numa lógica de reprodução e de memorização da informação, uma relação com um saber cuja apropriação é extrinsecamente motivada ou imposta, uma relação com o saber em que este é unicamente entendido como “capital” transaccionável no mundo do mercado de trabalho, então de facto teremos de admitir que a mudança de meios pouco acrescenta na transformação do trabalho que fazemos. Se, pelo contrário, estas ferramentas forem susceptíveis de promover uma relação com o saber cujo sentido primordial seja o da construção consciente e integral de si como pessoa, como profissional e como cidadão, então talvez possamos dizer que estes novos meios ajudam efectivamente a transformar a finalidade da educação, gerando novas perspectivas sobre o que é valorizado enquanto saber, sobre a inserção social da ciência e sobre a humanidade que queremos construir.